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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sem Fronteiras (Conto)




Liliana descobriu em sua última aula de Biologia que a estrutura celular de um ser humano ‘normal’ só é capaz de comportar vinte e três pares de cromossomos, o que perfazia um total de quarenta e seis cromossomos. Então, por que pessoas, como ela, tinham quarenta e sete, um a mais no par de número vinte e um? Ela lembrava bem, pois a professora, olhando para ela, disse se tratar de um caso de trissômia do vinte e um, ou, ela ainda endossou, um caso de aneuploidia conhecido como Síndrome de Down. Eu sou uma Down, Liliana pensou, com um certo orgulho. No entanto, ela não tinha certeza se aquilo a tornava, de alguma forma, diferente das outras crianças.

Ao fim da aula, um coleguinha, bem ‘adiantadinho’, chamou a Síndrome de Down de Ménage a Trois Genético. Liliana não sabia o que era Ménage a Trois, mas, pelo nome, devia ser algo bem engraçado e divertido. Ela prometeu a si mesma que, quando tivesse tempo, ela pesquisaria o significado daquele termo tão diferente.

A maioria das outras crianças da sua idade a respeitavam, mesmo ela sendo tão diferente, pelo menos na aparência, pois sua capacidade cognitiva, autodeterminação, inteligência e sensibilidade estavam, poder-se-ia dizer, uma nota a mais em comparação às demais. Ela era Liliana, o pequeno milagre de Deus.

Diferentemente, seus ‘educadores’, a começar pela diretora da sua escola, poderiam muito bem ser chamados de ‘comitiva do mal’. A mais perversa, hedionda, vil e asquerosa classe de ser humano (sim, eles são isso aí, pelo menos em sua natureza, mas na essência...). A pequena Liliana era constantemente lembrada de que ela só estava estudando ali devido à influência de seu pai, um respeitado Desembargador, presidente do Tribunal de Justiça do Estado em que moravam. Conhecendo as pessoas e os tramites certos, bem como sabendo a quem deveria ‘lavar’ a mão, seu pai havia conseguido uma liminar, a qual foi concedida em tempo recorde e, depois de mais algumas manobras, ele conseguiu que o processo fosse suspenso. Assim, Liliana passou a estudar em uma escola com pessoas que tinham quarenta e seis cromossomos em suas células.

Ah, o amor! A mais saudável patologia do coração. A impudica arma de Cúpido, responsável pelos mais desafortunados romances mitológicos, parecia transpor a inexorável barreira da lenda, que tanto o mistificava, o conduzindo a novos ares em sua mais pungente coloração. A flecha havia atingido o coração de Liliana, perfurando o ventrículo esquerdo e saindo pelo átrio direito. Sintomas: mariposas na barriga, sudorese nas mãos e boca seca. Nome do meliante: Arthur.

Isolada, sentada no pátio da sua escola, ela pousou, momentaneamente, o seu lanche do seu lado direito, e apanhou seu caderno de desenhos, onde, sonhadora, começou a rabiscar: Liliana ama Arthur; Arthur ama Liliana; Liliana vai casar com Arthur; Liliana quer beijar Arthur; Ele é lindo e eu quero namorar ele. Em meio a essa melosa profusão de frases, corações entrelaçados e flechados preenchiam toda a página do caderno.

Sem que Liliana percebesse, a mais detestável professora da escola e, por coincidência, sua professora de Biologia, vinha se aproximando por trás dela. Ao ver o caderno de desenhos pousado em suas mãos, a professora, bruscamente, o tomou dela.

- O que a mongolóidezinha anda desenhando? Com certeza não é nada que se aproveite.

Após analisar o conteúdo da página por alguns instantes, a professora riu da cara de Liliana.

- Só mesmo uma retardada como você para desenhar e escrever esse tipo de imbecilidade. Nem o lixo quer uma porcaria dessas.

- Devolva o meu caderno – disse Liliana com alguma dificuldade, pois a sua língua era, ligeiramente, mais protuberante que uma língua comum.

- E se eu não devolver?

- Por favor...

- Vou chamar o Arthur. Ele vai gostar de dar uma olhada nisso.

- Não faça isso... Não é certo... Eu vou dizer à diretora...

- Quem é você para dizer o que eu devo ou não fazer e, além do mais, é sua palavra contra a minha. Em quem você acha que ela vai acreditar?

No momento em que sua professora e Liliana discutiam, Arthur vinha passando por elas, em direção à sala de aula, pois o recreio já estava acabando.

- Arthur, meu amor, venha dar uma olhada nisso. Você vai gostar – chamou a professora.

Com o tronco meio inclinado e a mão direita no bolso da calça, Arthur mascava um chiclete. Ao chegar próximo à professora, Arthur apanhou o desenho. Ele o observou com bastante atenção, depois olhou para a professora e para Liliana e, em seguida, voltou a olhar o desenho. Ele riu e, com um cativante olhar de cumplicidade, ele, novamente, virou seu rosto para Liliana. Depois, ele sentiu como se uma fúria incontida, uma dose cavalar de ressentimentos, transbordasse de seu coração. A professora não gostou daquele olhar e, muito menos, daquele tom de voz.

- Escute aqui, sua idiota, que eu só vou falar uma vez...

- O que é isso, Arthuzinho? Eu vou falar à diretora e você vai ser suspenso...

- Cale a boca, sua vadia, senão eu lhe sento a mão na cara, e se você encostar um dedo em mim, eu lhe tiro de circulação mais rápido do que você é capaz de respirar.

- Mas...

- Você sabe quem é meu pai, não sabe?

- Arthuzinho, eu gosto tanto de você.

- Pois eu lhe odeio.

Sem dar mais nenhuma palavra, a professora se retirou, e deixou Liliana e Arthur sozinhos.

- Posso me sentar aí ao seu lado? – Arthur pediu, educadamente.

Liliana sentia como se seu coração fosse sair pela boca e suas tripas fossem se liquefazer a qualquer momento. Suas mãos gotejavam de tão suadas.

- Pode, mas o recreio já está terminando. É melhor depois.

- Não! Eu quero conversar com você agora. Eu preciso – disse Arthur, sentando-se ao lado de Liliana. – Seus desenhos são lindos. Gostei muito.

- Eu não queria...

- Achei que nunca teria essa oportunidade. Não parece, mas eu sou tímido, Liliana.

- Mas...

- Eu me apaixonei por você desde a primeira vez em que eu lhe vi. Você é meiga, inteligente e linda. É tudo o que eu busco em uma garota. Como eu poderia não me apaixonar por você.

Com lágrimas nos olhos, Liliana olhou para Arthur e, sem conseguir dizer qualquer outra coisa, ela apenas falou:

- Eu te amo.

- Eu também. Você não sabe o quanto.

Arthur aproximou-se mais de Liliana e, com seu braço esquerdo, a envolveu em um carinhoso abraço, permitindo que sua cabeça repousasse em seu ombro, e assim ele deixou ficar até que ela se acalmasse um pouco.

Com o polegar e o indicador, ele ergueu o queixo de Liliana e fitou seu rosto, olhando bem dentro de seu olhos. Seus lábios aproximaram-se dos dela e ele a beijou com ternura e paixão, fazendo com que ela se sentisse a mais especial das garotas, a única, a inigualável, o pequeno milagre de Deus...
Liliana.

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