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sábado, 16 de outubro de 2010

A Boneca (Conto)


Rebeca pressentia a vida da sua irmãzinha chegando ao fim. Agarrada à sua bonequinha de trapos e estopa, Catarina a aninhava junto a seu peito e, a não ser pela febre que a enfraquecia, ela a agarrava com toda a força que ainda tinha. Quatro anos. Puro sofrimento. Desde o seu nascimento. Em sua curta existência, ela não sabia o que era ser uma criança saudável. Imunidade baixa, muito baixa. Presentinho de seus pais ao trazê-la ao mundo. Depois, veio o abandono. Para eles, Rebeca e Catarina eram dois estorvos. Dois atrasos de vida. Por algum inexplicável acaso, Rebeca não havia sido contemplada com a doença.

Todo o seu patrimônio. Todos os seus bens. Tudo se resumia à Princesa Alice, a encardida bonequinha de Catarina, presente de sua amada irmã em seu último aniversário. Casa? Barraco? Não, não havia nada disso. O que havia era um toldo quatro chapas de metal, um velho lampião a gás e dois pedaços de espuma que, em algum passado remoto, já foram chamados de colchões e, sim, havia uma praça também. Não, não era uma praça, mas ela já foi conhecida como tal. Hoje, no entanto, nem de longe, ela lembrava o que já foi um dia. Deserta. Esquecida. Abandonada... Tudo havia sido conseguido em um lixão, em meio a ratos e baratas. Com apenas nove anos, Rebeca fez o melhor que pôde para aproximar sua irmã de todo o seu amor.

- Beca...

O som da voz de Catarina era muito baixo, quase inaudível. Um sussurro desesperado de uma criança que imagina o pior para si própria. Aquela noite estava sendo a pior de todas. Rebeca nunca havia visto sua irmãzinha tão enferma. Não havia remédios. Não havia dinheiro. Não havia médicos. Não havia saúde. Não havia governo. Não havia nada. Ah, não! Havia algo. Uma certeza. Não importava o quão simples e despretensiosos fossem os sonhos de Catarina e Rebeca, pois eles jamais se realizariam.

- Estou aqui, meu amor – disse Rebeca, deitando-se ao lado da sua irmãzinha e a trazendo para junto do seu peito.

- Tá doendo muito, Beca.

- Eu sei, meu anjo. Logo, logo vai passar. Eu prometo.

- Me abraça!

Rebeca abraçou sua irmãzinha e, perdida no suave perfume dos cabelos de Catarina, ela escondeu seu rosto, e chorou como se a dor mais corrosiva estivesse, aos poucos, devorando seu pequeno coração. A mais remota possibilidade de perder sua irmã a destruía. Ela não teria mais aquelas mãozinhas afagando o seu rosto. O beijo carinhoso. O ‘Eu te amo, Beca! Do tamanho do infinito’. Para Rebeca, aquilo era tudo. E tudo poderia acabar. A qualquer momento.

Catarina adormeceu nos braços de Rebeca, mas ela ainda estava acordada, abraçada à sua irmã e, naquela fria e chuvosa noite, nada, nem ninguém seria capaz de convencê-la do contrário. No entanto, houve um imprevisto. Uma voz. Não, não era uma voz. Um sussurro. Um pedido de ajuda. Vinha do lado de fora. Depois de acomodar Catarina no colchão e a cobrir com um velho lençol, Rebeca levantou-se e foi até o lado de fora. Lá ela viu um senhor bem velhinho, muito, muito velhinho. Os maldosos diriam que ele estava na terceira ou quarta prorrogação.

- Filha, estou com muita, muita fome. Eu não comi nada desde ontem. Você poderia me arrumar algo para comer.

Apiedada com a situação do velhinho, Rebeca disse:

- Senhor, eu só tenho algumas frutas e alguns pães dormidos que eu consegui na feira, hoje de manha. Se o senhor quiser, eu posso lhe dar alguma coisa para comer, sim. Você quer entrar?

- Por favor, minha filha.

Rebeca convidou o senhor a se sentar no colchão onde ela dormia e, depois de separar, em um recipiente de plástico, algumas frutas e dois pequenos pãezinhos, ela os entregou ao homem, junto com um copo de água.

- Obrigado... Como você se chama, minha filha?

- Rebeca, senhor.

- É um belo nome, minha linda. E sua irmã, como se chama?

- Catarina.

- Outro bonito nome.

- O senhor pode comer à vontade. Eu vou dar uma olhada nela, pois hoje ela está muito doente.

- Pode ir, meu anjo.

Após terminar de comer, o homem agradeceu a hospitalidade e se despediu, indo embora em seguida.

A madrugada ia alta. Ainda abraçada a sua irmã, Rebeca não conseguia abandonar seu maior temor e preocupação. O sono não vinha. Ela queria sentir o calor de Catarina o máximo que pudesse. Divagando o olhar à luz do lampião a gás, algo a havia chamado à atenção na boneca da sua irmã. Um bilhete. Preso por um grampo, lá estava ele na orelha descosturada da Princesa Alice.

Apesar de sua sofrível leitura, ela conseguiu ver o que estava escrito após apanhá-lo e soltar o grampo que ainda estava preso a ele.

Rebeca,

Seu amor por sua irmã sempre me comoveu e enterneceu meu coração como raras vezes observei ou, até mesmo, presenciei. Tive fome e ninguém me deu de comer. Fui humilhado e me trataram com arrogância, como se eu não fosse ninguém. Quando pensava em desistir, eis que eu a encontro. Você foi amável e hospitaleira sem ao menos me conhecer, ou, talvez, você já me conhecesse bem. Ao me ver, você sentiu algo diferente, meu amor? Como gratidão, a partir de hoje conduzirei as suas vidas da melhor forma possível. Acredite em mim. Tudo vai acontecer. Para começar, saiba que sua irmã está definitivamente curada. Eu não permitirei que aquela doença horrível tire sua irmã de você. Durmam bem. Amo vocês.


Um Amigo

P. S. – Há dinheiro embaixo do colchão. Comemorem e divirtam-se. Até breve.

- Eu te amo, Beca! Do tamanho do infinito.

Ao ver sua linda e amável irmãzinha, sorridente, saudável e desperta, como ela jamais havia visto, Rebeca a tomou nos braços, trazendo-a para junto de si e, abraçada a ela, ela chorou as mais doces e felizes lágrimas que ela jamais pensou verter algum dia.

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