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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O rouxinol (conto)


É preciso estudar. Para ser alguém na vida, é preciso estudar. Ora, os pais de Jaqueline sempre disseram isso a ela. Porém, eles esqueceram de dizer que um cemitério não era o lugar adequado para se fazer isso. Não era preciso. Jaqueline sabia muito bem que devia estar em uma escola àquela nublada e cinzenta hora da tarde. O que seus pais não a diriam se a vissem, solitária, prostrada de joelhos defronte a um sepulcro?

Com apenas dez anos de idade, Jaqueline já tinha motivos mais que suficientes para estar naquele lugar. Ela havia se apaixonado. Perdidamente. Quantas noites ela não dormiu com a foto de seu príncipe encantado colado junto a seu peito, enquanto fazia planos de subirem ao altar ou viverem juntos em um lindo castelo? Com seu polegar direito ela secou duas obstinadas lágrimas que desciam de seus olhinhos. Ela deslizou os dedos de sua mão sobre o nome e o epitáfio de seu amado. Sempre vou te amar, meu amor! Não importa o que aconteça. Eu nunca vou te esquecer.

Jaqueline depositou uma rosa e um jacinto, presas por um laço feito com uma fita de seda branca, sobre o túmulo de David. Tudo o que ele fazia era por ela. Para ela. Ela era o seu amor. David era uma criança completamente desprovida de qualquer interesse que não significasse a felicidade de sua garota. Nem mesmo sua própria vida ele se permitiu preservar, apenas para que a dela se perpetuasse. Por ela. Para ela. Tudo. Até sua própria vida.

Foi tudo muito rápido. Fim de aula. Mãozinhas dadas. Planos. Mais planos. Casamento. Filhos. Trabalho. Eles eram apenas crianças. Precoces, mas imaturas. Ele a deixaria em casa, a envolvendo com o calor de seus braços, dizendo sempre, repetidas e incansáveis vezes, que a amava. David queria se certificar de que ela, nem por um único momento, duvidasse do que ele estava falando. Antes, uma passada na sorveteria. Uma banana split para ela e um sundae para ele. David pagaria. No caminho, um canteiro de obras. Construção de um edifício de alto luxo. Um andaime está caindo na vertical em direção à Jaqueline. Puro aço. Cem metros de altura. David olha para o alto. Ele só tem algumas frações de segundo. Ela está sorridente e feliz, alheia a tudo. Ele é tomado por um desespero e um medo inumanos. Seu olhar traduz isso. Ele segura as mão dela e as repele, em uma tentativa de impulsionar seu corpo para longe. Depois, há dor, muita, muita dor. Ele grita. Depois, tudo escurece, como o termino de um lindo espetáculo que ainda não havia chegado ao fim.

Não foi o canto dos pássaros, empoleirados em diversas árvores dispostas em meio a tantas sepulturas, que, momentaneamente, despertou Jaqueline de seus pensamentos. Foi, sim, um pássaro, mas não aqueles pássaros. Era um rouxinol. Ele pousou sobre a sepultura de David e fitou Jaqueline, com bastante intimidade para um pássaro. Ele cantou, doce e suavemente para ela. Como era belo o canto do rouxinol. Jaqueline amorteceu a saudade de seu amor com a nostálgica cantoria daquele simpático pássaro.

O rouxinol virou sua cabeça umas duas ou três vezes para a direita, pedindo que ela o seguisse. O rouxinol abriu suas lindas asas acastanhadas e levantou vôo, pairando, por um breve instante, diante dos olhos dela, antes de indicar o caminho a ser seguido.

Jaqueline seguiu por uma alameda arbórea com jazigos e sepulturas por ambos os lados até que o rouxinol pousou sobre uma linda placa de mármore. Ela se aproximou do pássaro e ajoelhou-se até onde ele estava. Ela viu a placa e sua vista escureceu. Um mal súbito. Um desagradável prenúncio de uma síncope. Estava tudo lá. Cada letra. Cada algarismo. Nome, epitáfio, data de nascimento e data de falecimento. Não havia a menor possibilidade de ela está equivocada. Ela estava diante de sua própria sepultura. Uma gentil e compassiva mão pousou sobre o seu ombro. Assustada, ela virou sua cabeça e olhou para o alto.

- Eu não consegui, amor! – disse David, com lágrimas nos olhos, enquanto o rouxinol pousava em seu ombro direito.

- David!?

- Oi, querida.

Jaqueline sentiu suas pernas fraquejarem. Havia medo e pânico em seus olhos, mas o súbito despertar daquele que foi sua grande paixão a havia relegado a um assombroso impasse.

- O que está acontecendo, amor? Estou com medo.

David abaixou-se até onde Jaqueline estava e, com seu polegar e seu indicador, ergueu seu queixo e olhou bem no fundo dos seus olhos, antes de beijar seus lábios. David notou que eles continuavam doces, como no dia que ele a beijou pela primeira vez.

- Não há o que temer, meu anjo. Agora estamos juntos. Para sempre.

- Eu estou morta?

- Não! Nós estamos vivos como jamais estivemos. Eu posso sentir o seu beijo e suas mãos em meu rosto. Se estivéssemos mortos, isso não seria possível.

- Para onde nós vamos?

- Embora.

- Para onde?

- Um lugar lindo, meu amor, onde tudo que sonhamos quando estávamos juntos poderá se tornar realidade.

Jaqueline envolveu David com seus braços, enquanto o rouxinol ainda cantava em seu ombro. Com a cabeça encostada junto ao peito dele, ela chorou em parte por uma inexplicável tristeza e outra pela felicidade de ter seu amado companheiro de volta e, dessa vez, para sempre...

David levantou-se e, carinhosamente, ergueu Jaqueline para junto de si, ainda evolvendo-a com seus braços. Ele tomou suas mãos para junto das suas, como da última vez em que estiveram juntos e saiu caminhando com ela.

O canto do rouxinol envolveu o ar, até que uma linda e reconfortante luz branca envolveu David e Jaqueline, conduzindo-os para um lugar onde pudessem desfrutar do único sentimento que eles, mutuamente, se devotavam: o amor, o mais sincero amor.


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