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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A menina e o vira-lata (conto)


Nuvens assomavam-se em uma fria e triste madrugada, onde escassas estrelas brilhavam junto a uma apática Lua. No entanto, nada era comparável a dor descortinada nos meigos e tristonhos olhinhos de uma linda garotinha que, junto com seu cãozinho vira-lata, vivia sob uma marquise de um decrépito e abandonado edifício.

A garotinha estava terrivelmente machucada, pois, naquela mesma noite, quando saiu para buscar comida para ela e seu cãozinho, tudo o que ela encontrou foi a maldade em sua crua e mais repulsiva forma.

Ela pôs um puído e esfarrapado paninho entre suas pernas, pois lá era o local que mais sangrava. Uns três ou quatro dentes da sua boca estavam quebrados, mas o que doía mesmo era o profundo corte em sua gengiva, de onde vertia um salivado e viscoso sangue vermelho vivo. Seu amado cãozinho estendeu suas patinhas sobre suas perninhas e lambeu seu braço, o qual havia sido atingido por um tiro de raspão.

O cãozinho, cujo nome era Apolo, chorou de tristeza e vergonha por não ter conseguido proteger sua guardiã e companheira. Das duas pessoas que o haviam devotado o sincero e desinteressado amor por tantos e tantos anos, ela era a única que ainda lhe restava. A garotinha sabia que o cãozinho não tinha culpa de absolutamente nada, mas ele não era capaz de entender aquilo, ou talvez não se achasse no direito de poder se dar ao luxo de fazê-lo.

No instante em que a garotinha pousou sua pequena e raquítica mãozinha sobre a cabeça de Apolo, afagando-a com carinho, o Céu brilhou com uma luminescência incrivelmente extasiaste e hipnótica, e o barulho que se ouviu em seguida faria o mais enfurecido relâmpago parecer uma suave melodia. Depois que isso tudo aconteceu, tudo o que era matéria e que estava ao redor da menininha havia simplesmente desaparecido, a exceção dela própria e de seu cãozinho.

Contrastando com a brancura envolvente, surgiu, lá no alto, uma dourada e brilhante esfera que, a media que se aproximava da garotinha e de seu cãozinho, os enchia de um reconfortante calor. Quando a esfera pousou diante deles, ela, aos poucos, foi adquirindo uma forma aparentemente humana, pois, na verdade a forma que a esfera adquiriu era angelical.

Apolo correu para o anjo e pulou em seus braços, enchendo sua face de afetuosas e babadas lambidelas, enquanto seu rabo balançava de um lado a outro, como as paletas do pára-brisa de um automóvel. O cãozinho vira-lata jamais poderia estar enganado. Sim, sem dúvida alguma, era ele que estava ali bem diante se seus perspicazes olhos caninos. O anjo tomou Apolo nos braços e dirigiu-se à garotinha.

- Amor?

- Amor!? Você me conhece?

- Acho que além de Deus, eu fui a única pessoa que a conheceu e amou mais que tudo no mundo.

- Mas...

- Eu sei. Você nunca me viu, não é isso que você está pensando?

- É que eu não estou lhe reconhecendo.

- E nem podia. Você ainda era muito pequenininha quando aconteceu. Nós só tínhamos um ao outro, além de Apolo para nos alegrar, mas minha hora havia chegado e eu tive que partir.

- Você...

A pequena garotinha, muito forçosamente, reavivou sua memória e, como cartas embaralhadas, alguns tristes acontecimentos vieram à tona em sua memória.

- Sim...

- Foi atropelado?

- Fui, minha linda.

- Papai?

- Oi, meu amor.

A garotinha correu aos braços de seu pai e, embora ainda estivesse machucada, não se importou nem um pouco, pois tudo o que ela queria era abraçar e enchê-lo de beijos, e dizer que o amava e como ele havia feito falta todo aquele tempo.

- Você vai ficar comigo?

- Eu preciso ir meu amor, mas não esqueça que um dia nós estaremos todos juntos novamente: Eu, você e Apolo.

A menina deitou sua cabecinha no ombro do seu pai e chorou de tristeza, pois sabia que não teria mais sua companhia.

- Amor...

- Hummm

- Eu vou falar com Deus e te prometo, pela glória da eternidade, que estaremos juntos muito, muito em breve.

- Isso é injusto. Eu não tenho escolhas.

- Não pense assim, princesa – disse o pai da menina. – Não se esqueça que eu sempre vou te amar e sempre estarei contigo, esteja você onde estiver?

- Também te amo, pai.

- Agora, precisamos dar um jeito nesses machucados. Depois eu vou dar uma lição em quem fez isso com você. Venha, deite em meu ombro e relaxe.

A menina sentiu a mão de seu pai carinhosamente afagando sua cabeça. Apolo, que ainda estava no outro braço do anjo, estendeu sua patinha sobre a perna da menina, e lá também repousou.

As longas asas do anjo envolveram a menina e seu vira-lata fazendo com que eles resvalassem para um doce e entorpecente sono, onde as cores do paraíso espocavam em seus sonhos como a mais inebriante e satisfatória recompensa.

* * *

A menina e Apolo estavam abraçados e ainda adormecidos, deitados sob a marquise do edifício abandonado. Quando acordassem, que grata surpresa eles não teriam! Além da felicidade de terem sonhado com o anjo que já esteve tão presente na vida deles, a menina perceberia que seu corpo não mais padecia em dor e aflição, e a lembrança do mal havia sido irremediavelmente apagada da sua memória.

Sete cestas repletas de deliciosos alimentos repousavam junto a eles. A menina e o vira-lata não saberiam explicar a origem de toda aquela comida, mas, de uma coisa eles tinham certeza: eles não esqueceriam, nem por um único instante, de agradecer a Deus por aquela maravilhosa noite.

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