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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Furto Famélico

Observar a lógica rigorosa e singular da paixão e a vida colorida e emocional do intelecto, atentar nos pontos em que se encontravam e se separavam, no ponto de concórdia e no de discórdia... (Oscar Wilde)


Uma sucessão encadeada de péssimas escolhas. A vida de Paulo poderia se resumir a isto. No entanto, a tresloucada veneração que ele devotava à sua filha não mudou uma virgula que fosse. A pequena Kiola detinha, ainda que inconscientemente, a chave do coração de Paulo. Morpheu erguia o onírico pedestal em seus mais apaixonantes sonhos. Os sonhos onde sua filha estava presente e, simplesmente, o chamava de pai.

Graduado em Direito, Mestre em Direito Processual e, até certo momento da sua vida, um advogado, um brilhante advogado, mas a sua mais vil escolha derrubou sua moral ladeira abaixo, como um veículo que desce um barranco em ponto morto. Ele era alcoólatra. Um alcoólatra contumaz. Por uma proeza do destino, ele havia perdido tudo. Família, carros, imóveis, dinheiro, uma generosa carteira de ações... Absolutamente tudo. O único bem que lhe restou, o mais valioso de todos, que não lhe tomaram, foi sua amada Kiola, sua princesinha de cinco anos, com quem morava na rua.

Naquela manhã, Paulo e Kiola estavam em um supermercado e o dinheiro de que ele dispunha naquele momento não dava para comprar o que sua filha queria. Kiola queria simplesmente um pacote de biscoitos recheados e uma garrafinha de iogurte. O que fazer? Paciência! Do alto falante uma funcionária do supermercado dava instruções aos repositores de estoque e emitia os mais diversos avisos aos clientes, enquanto Paulo tentava encontrar uma solução para aplacar a fome de sua amada filhinha.

- Papai, compra biscoito e danone.

Um segurança passou por Paulo e o olhou de esgueira, depois de observar os péssimos andrajos que ele e sua filha estavam usando. Paulo sabia que as pessoas eram tendenciosas a fazer um pré-julgamento acerca dos outros, simplesmente usando como critério o que elas vestiam, calçavam ou usavam.

- Papai tá sem dinheiro, meu amor. Só posso comprar dois pães e um ovo pra gente comer, princesa.

- Por favor, papai.

Não é clichê! O amor vence a razão. Ele a subjuga e tripudia como se ela fosse a mais abjeta e incoerente manifestação de pseudo-racionalidade. O amor é desarrazoado em todo o seu desvairo, pouco se lixando com as conseqüências que ele é capaz de trazer. No entanto, ele sabe que, por mais louco que ele possa ser, um doce e sedutor encanto emanam dele, como um desejo ardente em se provar um cobiçoso veneno. O que dizer, então, do amor de um abnegado pai para com sua filha? Se fosse possível hierarquizar o amor, possivelmente essa manifestação estaria em uma boa colocação.

Paulo dirigiu-se a seção de biscoitos e perguntou qual era o que sua filha queria. Kiola apontou para o seu biscoito preferido. Depois de olhar para ambos os lados do corredor e ver que não havia ninguém, ele apanhou um pacote e, levantando a perna direita da sua calça, ele acomodou um pacote junto à sua canela e, depois, novamente desceu a perna da calça para cobri-la. Em seguida, ele repetiu a operação, só que desta vez na seção iogurtes que, depois de apanhá-lo, foi acomodado em sua perna esquerda.

Paulo comprou os dois pães e um único ovo e, depois de dirigir-se ao caixa com Kiola em seu braço direito e fazer o pagamento, foi caminhando para a saída do supermercado. Ao aproximar-se do detector antifurto, ele olhou para sua amada princesinha e disse:

- Amor, preciso que você agarre bem forte em meu pescoço, ok?

- Tudo bem, papai. Tá doente, é? Eu dou um beijo e passa. Quer que eu dê um beijo?

- Não, meu bebê. Só faça o que eu disse, tudo bem?

- Tudo bem, papai.

Paulo e Kiola atravessaram o detector. Quase ao mesmo tempo em que ele soou, um segurança vinha correndo em seu encalço, gritando palavras pouco amigáveis para que ele parasse. Paulo correu com sua filha nos braços, mas não foi muito longe. Dois disparos.

Um.

Dois.

Por uma milionésima fração de segundo houve silêncio. Depois, um gemido. Era uma sensação quente e viscosa que começava nos braços de Paulo e, em seguida, descia por sua barriga, sua virilha, suas pernas e, por último, ele sentia chegando ao pacote de biscoitos e à garrafinha de iogurte.

- Papai...

A cabeça de Kiola pendia inerte nos ombros de Paulo e, antes que ele, definitivamente, pudesse entregar sua amada princesinha nos braços do Senhor Jesus Cristo, ele contemplou um laivo de ternura e gratidão nos olhos de sua filha por ele ter sido um pai tão amoroso. O brilho tornou-se opaco. As pálpebras se fecharam.

- Oh, Deus, não! – Paulo gritava e chorava como uma criança. Entre soluços convulsivos, ele continuou – Eu já perdi tudo, meu Deus, mas não tire minha princesinha de mim. Por favor, Pai!

Nada seria capaz de convencer Paulo a soltar sua filha. Ele queria sentir todo o calor que ainda restava de Kiola, sentindo-o junto a seu peito e, mesmo que o calor cedesse lugar à frieza e a rigidez, ele, ainda assim, queria trazê-la junto de si. Para todo o sempre.

Não havia muita gente no supermercado o que, talvez, tenha justificado o fato de que o ocorrido não tenha chamado a atenção de muitas pessoas, a não ser uns três ou quatro clientes, além do segurança.

- Vagabundo! Mete logo uma bala na cabeça desse ladrão idiota – gritaram os espectadores para o segurança.

Não houve dúvidas. Um terceiro disparo. Na cabeça, conforme solicitado. Com a conivência do gerente do supermercado, para que a reputação da empresa não fosse abalada, uma arma foi plantada nas mãos de Paulo. Legitima defesa. Inquérito arquivado. Não haveria motivos para o Ministério Público oferecer denúncia. Afinal, tudo não havia passado de uma fatalidade, não é mesmo?


* * *


Em um lindo e maravilhoso lugar, sob o reconfortante e maravilhoso calor de um lindo sol, Paulo e Kiola rolavam por uma campina esverdeada, sob a copa de uma linda macieira e, junto a pai e filha, havia uma toalha estendida sobre o solo, onde havia biscoitos recheados dos mais diversos sabores e deliciosos iogurtes...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Horário de Verão - Quem foi o idealizador?


Monumento dedicado a William Willet, em Pets Woods. A inscrição diz Horas non numero nisi aestivas (Não conto as horas, a menos [que sejam] de verão)

Eu, particularmente, não vejo mal algum no horário de verão. Talvez porque aqui no meu estado ele não vigore. No entanto, há quem ache uma chateação ter que ajustar o relógio duas vezes ao ano e, muitas vezes, não ver a utilidade em tal fato. Mas, você sabe de quem foi a idéia do horário de verão, o qual, até hoje, influência muitos países do mundo?

No fim do século XVIII, Benjamim Franklin foi o primeiro a idealizar o horário de verão. William Willett, mais de um século depois, sugeriu, junto ao parlamento britânico, efetivar a idéia de Franklin. No entanto, Willett morreu antes que a lei fosse votada e promulgada e, conseqüentemente, começasse a sua vigência.

Em uma cera manhã de verão, William Willett, exímio construtor, natural de Chislehurst – condado de Kent – estava passeando com seu cavalo em Pets Woods quando teve a idéia de ajustar os horários naquela época do ano. Tal acontecimento residiu no fato de que, àquela hora, muitas casas ainda estavam com as cortinas fechadas. Ora, ele deve ter pensado, ‘por que razão essas pessoas desperdiçam a claridade do sol?’. Daí surgiu a idéia de se fazer uma ferrenha campanha junto ao congresso britânico para que um projeto de lei fosse logo aprovado. A idéia era, basicamente, a seguinte: por quatro vezes se deveria adiantar o relógio em 20 minutos na primavera e no verão, o que daria um total de 80 minutos e, posteriormente, deveria se atrasar o mesmo tanto no outono. Dessa forma, seria possível que as pessoas pudessem otimizar o aproveitamento da parte da claridade que antecede a noite.

Willett assim, brilhantemente, ressaltou seu argumento em um de seus folhetins propagandisticos: “A luz é uma das maiores dádivas do nosso Criador. Enquanto a luz do dia no alumia, a alegria reina, as ansiedades amainam e reunimos coragem para enfrentar a vida”.

A monarquia inglesa, representada, naquele período, pelo Rei Eduardo VII, não quis se dar ao inconveniente e ao incômodo de aguardar até que a lei fosse sancionada. Em atípico caso, portanto, mas não impossível, visto que a realeza, tal qual regime absolutista, ainda podia legislar de acordo com suas conveniências, resolveu baixar um decreto, onde passou a vigorar o horário de verão em sua mansão real de mais de 7.000 hectares, em Sandringham.

O ponto de toque que, finalmente, convenceu os parlamentares a aprovarem o horário de verão, foi a patente e justificada necessidade em se reduzir a necessidade de luz artificial na Primeira Guerra Mundial, sendo seguido, posteriormente, por outros países. Durante a Segunda Grande Guerra foram adotados dois horários de verão, o que resultou em uma diferença de duas horas no verão e uma hora no inverno.

Bem, caros colegas, agora quando mandarem vocês adiantarem e atrasarem seus relógios, vocês vão ficar sabendo de quem foi a idéia que o (a) obrigou a acordar quatro ou cinco horas da madrugada em certa época do ano e, fazendo você acreditar que, na verdade, são cinco ou seis horas da manhã. Se estiver pensando em retaliação, esqueça! Ele já morreu!

Abraço.


sábado, 16 de outubro de 2010

A Boneca (Conto)


Rebeca pressentia a vida da sua irmãzinha chegando ao fim. Agarrada à sua bonequinha de trapos e estopa, Catarina a aninhava junto a seu peito e, a não ser pela febre que a enfraquecia, ela a agarrava com toda a força que ainda tinha. Quatro anos. Puro sofrimento. Desde o seu nascimento. Em sua curta existência, ela não sabia o que era ser uma criança saudável. Imunidade baixa, muito baixa. Presentinho de seus pais ao trazê-la ao mundo. Depois, veio o abandono. Para eles, Rebeca e Catarina eram dois estorvos. Dois atrasos de vida. Por algum inexplicável acaso, Rebeca não havia sido contemplada com a doença.

Todo o seu patrimônio. Todos os seus bens. Tudo se resumia à Princesa Alice, a encardida bonequinha de Catarina, presente de sua amada irmã em seu último aniversário. Casa? Barraco? Não, não havia nada disso. O que havia era um toldo quatro chapas de metal, um velho lampião a gás e dois pedaços de espuma que, em algum passado remoto, já foram chamados de colchões e, sim, havia uma praça também. Não, não era uma praça, mas ela já foi conhecida como tal. Hoje, no entanto, nem de longe, ela lembrava o que já foi um dia. Deserta. Esquecida. Abandonada... Tudo havia sido conseguido em um lixão, em meio a ratos e baratas. Com apenas nove anos, Rebeca fez o melhor que pôde para aproximar sua irmã de todo o seu amor.

- Beca...

O som da voz de Catarina era muito baixo, quase inaudível. Um sussurro desesperado de uma criança que imagina o pior para si própria. Aquela noite estava sendo a pior de todas. Rebeca nunca havia visto sua irmãzinha tão enferma. Não havia remédios. Não havia dinheiro. Não havia médicos. Não havia saúde. Não havia governo. Não havia nada. Ah, não! Havia algo. Uma certeza. Não importava o quão simples e despretensiosos fossem os sonhos de Catarina e Rebeca, pois eles jamais se realizariam.

- Estou aqui, meu amor – disse Rebeca, deitando-se ao lado da sua irmãzinha e a trazendo para junto do seu peito.

- Tá doendo muito, Beca.

- Eu sei, meu anjo. Logo, logo vai passar. Eu prometo.

- Me abraça!

Rebeca abraçou sua irmãzinha e, perdida no suave perfume dos cabelos de Catarina, ela escondeu seu rosto, e chorou como se a dor mais corrosiva estivesse, aos poucos, devorando seu pequeno coração. A mais remota possibilidade de perder sua irmã a destruía. Ela não teria mais aquelas mãozinhas afagando o seu rosto. O beijo carinhoso. O ‘Eu te amo, Beca! Do tamanho do infinito’. Para Rebeca, aquilo era tudo. E tudo poderia acabar. A qualquer momento.

Catarina adormeceu nos braços de Rebeca, mas ela ainda estava acordada, abraçada à sua irmã e, naquela fria e chuvosa noite, nada, nem ninguém seria capaz de convencê-la do contrário. No entanto, houve um imprevisto. Uma voz. Não, não era uma voz. Um sussurro. Um pedido de ajuda. Vinha do lado de fora. Depois de acomodar Catarina no colchão e a cobrir com um velho lençol, Rebeca levantou-se e foi até o lado de fora. Lá ela viu um senhor bem velhinho, muito, muito velhinho. Os maldosos diriam que ele estava na terceira ou quarta prorrogação.

- Filha, estou com muita, muita fome. Eu não comi nada desde ontem. Você poderia me arrumar algo para comer.

Apiedada com a situação do velhinho, Rebeca disse:

- Senhor, eu só tenho algumas frutas e alguns pães dormidos que eu consegui na feira, hoje de manha. Se o senhor quiser, eu posso lhe dar alguma coisa para comer, sim. Você quer entrar?

- Por favor, minha filha.

Rebeca convidou o senhor a se sentar no colchão onde ela dormia e, depois de separar, em um recipiente de plástico, algumas frutas e dois pequenos pãezinhos, ela os entregou ao homem, junto com um copo de água.

- Obrigado... Como você se chama, minha filha?

- Rebeca, senhor.

- É um belo nome, minha linda. E sua irmã, como se chama?

- Catarina.

- Outro bonito nome.

- O senhor pode comer à vontade. Eu vou dar uma olhada nela, pois hoje ela está muito doente.

- Pode ir, meu anjo.

Após terminar de comer, o homem agradeceu a hospitalidade e se despediu, indo embora em seguida.

A madrugada ia alta. Ainda abraçada a sua irmã, Rebeca não conseguia abandonar seu maior temor e preocupação. O sono não vinha. Ela queria sentir o calor de Catarina o máximo que pudesse. Divagando o olhar à luz do lampião a gás, algo a havia chamado à atenção na boneca da sua irmã. Um bilhete. Preso por um grampo, lá estava ele na orelha descosturada da Princesa Alice.

Apesar de sua sofrível leitura, ela conseguiu ver o que estava escrito após apanhá-lo e soltar o grampo que ainda estava preso a ele.

Rebeca,

Seu amor por sua irmã sempre me comoveu e enterneceu meu coração como raras vezes observei ou, até mesmo, presenciei. Tive fome e ninguém me deu de comer. Fui humilhado e me trataram com arrogância, como se eu não fosse ninguém. Quando pensava em desistir, eis que eu a encontro. Você foi amável e hospitaleira sem ao menos me conhecer, ou, talvez, você já me conhecesse bem. Ao me ver, você sentiu algo diferente, meu amor? Como gratidão, a partir de hoje conduzirei as suas vidas da melhor forma possível. Acredite em mim. Tudo vai acontecer. Para começar, saiba que sua irmã está definitivamente curada. Eu não permitirei que aquela doença horrível tire sua irmã de você. Durmam bem. Amo vocês.


Um Amigo

P. S. – Há dinheiro embaixo do colchão. Comemorem e divirtam-se. Até breve.

- Eu te amo, Beca! Do tamanho do infinito.

Ao ver sua linda e amável irmãzinha, sorridente, saudável e desperta, como ela jamais havia visto, Rebeca a tomou nos braços, trazendo-a para junto de si e, abraçada a ela, ela chorou as mais doces e felizes lágrimas que ela jamais pensou verter algum dia.