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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Fred e Vivian (Conto)


Levei muito tempo para refletir acerca dos rumos que minha vida havia tomado. Não posso dizer que sempre me considerei um inútil, o que não quer dizer que eu seja um completo imprestável. Acontece que quando você se apaixona, como é o meu caso, você quer fazer o possível para destacar suas qualidades e virtudes, e tentar esconder o que você tem de pior, e com certeza você tem algo nesse sentido. Por mais paradoxal que possa parecer, posso me definir como um zero a esquerda com virtudes. Sem grandes feitos ou glórias, meu maior êxito foi o meu amor.

Éramos diferentes em todos os sentidos, mas não o que nós éramos. Essa era a nossa natureza. Vivian era pura, mimada e vivia, praticamente, em uma redoma de vidro. Quanto a mim, eu não passava de um reles vagabundo, mas que possuía o mundo, a liberdade e a capacidade de amar sem fronteiras. Nosso único elo era uma fenda na parede dos fundos de sua casa, a qual dava para um quintal, onde, após pular uma mureta, eu conseguia ter acesso.

Naquela noite chovia, e eu estava encharcado até os ossos. Eu tremia de frio, mas a perspectiva de sentir o beijo de Vivian através da fenda e ouvi-la dizer que me amava, supria tais mazelas. Após atravessar o quintal e, sorrateiramente, chegar ao muro, percebi que ela já me esperava. Ao nosso modo, não dissemos nada um ao outro. Através da fenda, pude sentir seu beijo, sua língua indo de encontro a minha. Nos beijamos com se nossa existência dependesse da nossa capacidade de perpetrar o nosso amor. Se fosse realmente isso, teríamos a vida eterna.

- Vamos fugir, amor?! – propus a Vivian, a mercê do único sentimento que nada tinha a ver com a minha sobrevivência nas ruas.

- Como, querido? Eu estou presa, e sem alternativas.

- Estou enlouquecendo, Vivian. Não consigo ficar mais um só segundo sem você. Isso vai acabar me matando. Quero a felicidade, e quero ter você ao meu lado quando isso acontecer.

- Não pensaria duas vezes, Fred, se eu tivesse uma única chance de poder fazer você alcançá-la.

- Amor, vamos fazer o seguinte: eu não vou poder quebrar a parede sem levantar suspeitas, então, minha única alternativa, vai ser cavar um buraco sob o solo. Sei como fazer isto. O chão do seu quintal é feito de cimento e, até eu quebrá-lo e chegar ao solo para cavar o túnel, vai demorar um pouco, mas eu vou fazer. Como é o chão aí do seu lado?

- É cerâmica, amor. Mas... Você acha que isso vai dar certo, Fred?

- Claro! Já pensei em tudo, querida. Quando terminar o trabalho, eu só vou precisar remover quadro pedras, o suficiente para que você possa passar pelo túnel.

Por sete madrugadas seguidas, ininterruptamente, propus-me a trabalhar com dedicação e afinco. Quando me sentia desmotivado, eu imaginava a noite de amor que eu teria com Vivian, nossa felicidade, nossos filhos... Então eu cavava até meus membros calejarem e sangrarem. Eu era de Viviam e Vivian era minha. Nós nos pertencíamos como se fossemos um só.

Ao fim do meu trabalho, percebi que eram duas horas de uma fria e enluarada madrugada. Neste instante, Vivian pôde, finalmente, de forma bastante sorrateira, atravessar o túnel. Quando nos encontramos, manifestamos, de forma bastante silenciosa, nossa felicidade e alegria em ter um ao outro. Nos beijamos e seguimos nosso rumo, onde nenhum muro, nem ninguém poderiam subjugar o meu amor por Vivian, pois aquilo era posse e estava aquém do que eu sentia pela minha grande paixão.

Eu já havia preparado nosso ninho de amor naquela mesma noite. Eu havia conseguido tudo o que ela gostava de comer e beber, e pus junto a um lençol estendido sobre uma deserta e orvalhada campina verdejante, sob a copa de uma macieira. Quando chegamos, acendi quatro velas aromáticas em cada canto do lençol e a convidei a deitar.

Nos amamos como eu jamais havia amado alguém. Não gosto dessas coisas performáticas, mas, tão somente, dar um sentido ao sexo: amando. Após duas horas, estávamos extasiados e resolvemos descansar. A acomodei junto a meu peito e, juntos, adormecemos... Felizes e sorrindo.

Despertei assustado. Vivian debatia-se, desesperada, junto a meu peito. Em seus olhos havia dor e morte, e eu me vi amedrontado diante da minha impotência em não encontrar uma razão ou motivo para aquilo e, além de tudo, a possibilidade de eu perder minha Vivian encheram meu coração de terror.

Após perceber que meu corpo estava tomado pelo sangue de Vivian, divisei o horizonte, e vi o que havia provocado tanta dor em minha amada. Uma enorme cascavel fugia, sorrateira, para longe. Eu não podia deixar aquilo barato. Velozmente, corri em direção à serpente e, com minhas próprias forças, a abati possuído por uma ira a qual eu desconhecia possuir. Eu a trucidei.

Corri em direção à Vivian e, ao tomá-la para junto de mim, notei que ela estava morta. Tomado pelo desespero, chorei, como nunca antes havia chorado. Minhas lágrimas caiam sobre a face de Vivian, mas, mesmo assim, encontrei forças para dar um último beijo nos lábios eternamente adormecidos daquela que me fez enxergar o mundo com outros olhos, sem rancor no coração.

- Amor...

Assustado, levantei minha face e notei os olhos de Vivian ainda ensonados, como se ela tivesse acabado de acordar de um sono profundo.

- Por que você está chorando? – continuou Vivian.

- Achei que havia te perdido, querida.

- Eu só estava dormindo, amor.

Novamente, beijei Vivian e, ao olhar para seu lindo corpo, percebi que não havia mais nenhuma gota de sangue e, onde a cobra havia mordido, não havia mais ferimento algum. Ainda chorando, eu a abracei, mas só que desta vez eu estava feliz, incrivelmente feliz.

Bem... Antes de terminar minha história, tenho que dizer que, talvez diante da sua perplexidade e desapontamento, eu não passo de um vira lata, e minha amada Vivian é uma legitima Basset. Essa é a nossa história, a qual durou longos e apaixonantes anos. Vivian me deu lindos filhos, os quais foram criados com todo o amor que Vivian havia me ensinado a sentir. Por fim, nossa história terminou quando a mais inexorável certeza de qualquer existência não permitiu mais nenhuma única prorrogação. Mas, até lá, havíamos vivido intensamente, como se cada dia de nossas vidas fosse o último.


quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O rouxinol (conto)


É preciso estudar. Para ser alguém na vida, é preciso estudar. Ora, os pais de Jaqueline sempre disseram isso a ela. Porém, eles esqueceram de dizer que um cemitério não era o lugar adequado para se fazer isso. Não era preciso. Jaqueline sabia muito bem que devia estar em uma escola àquela nublada e cinzenta hora da tarde. O que seus pais não a diriam se a vissem, solitária, prostrada de joelhos defronte a um sepulcro?

Com apenas dez anos de idade, Jaqueline já tinha motivos mais que suficientes para estar naquele lugar. Ela havia se apaixonado. Perdidamente. Quantas noites ela não dormiu com a foto de seu príncipe encantado colado junto a seu peito, enquanto fazia planos de subirem ao altar ou viverem juntos em um lindo castelo? Com seu polegar direito ela secou duas obstinadas lágrimas que desciam de seus olhinhos. Ela deslizou os dedos de sua mão sobre o nome e o epitáfio de seu amado. Sempre vou te amar, meu amor! Não importa o que aconteça. Eu nunca vou te esquecer.

Jaqueline depositou uma rosa e um jacinto, presas por um laço feito com uma fita de seda branca, sobre o túmulo de David. Tudo o que ele fazia era por ela. Para ela. Ela era o seu amor. David era uma criança completamente desprovida de qualquer interesse que não significasse a felicidade de sua garota. Nem mesmo sua própria vida ele se permitiu preservar, apenas para que a dela se perpetuasse. Por ela. Para ela. Tudo. Até sua própria vida.

Foi tudo muito rápido. Fim de aula. Mãozinhas dadas. Planos. Mais planos. Casamento. Filhos. Trabalho. Eles eram apenas crianças. Precoces, mas imaturas. Ele a deixaria em casa, a envolvendo com o calor de seus braços, dizendo sempre, repetidas e incansáveis vezes, que a amava. David queria se certificar de que ela, nem por um único momento, duvidasse do que ele estava falando. Antes, uma passada na sorveteria. Uma banana split para ela e um sundae para ele. David pagaria. No caminho, um canteiro de obras. Construção de um edifício de alto luxo. Um andaime está caindo na vertical em direção à Jaqueline. Puro aço. Cem metros de altura. David olha para o alto. Ele só tem algumas frações de segundo. Ela está sorridente e feliz, alheia a tudo. Ele é tomado por um desespero e um medo inumanos. Seu olhar traduz isso. Ele segura as mão dela e as repele, em uma tentativa de impulsionar seu corpo para longe. Depois, há dor, muita, muita dor. Ele grita. Depois, tudo escurece, como o termino de um lindo espetáculo que ainda não havia chegado ao fim.

Não foi o canto dos pássaros, empoleirados em diversas árvores dispostas em meio a tantas sepulturas, que, momentaneamente, despertou Jaqueline de seus pensamentos. Foi, sim, um pássaro, mas não aqueles pássaros. Era um rouxinol. Ele pousou sobre a sepultura de David e fitou Jaqueline, com bastante intimidade para um pássaro. Ele cantou, doce e suavemente para ela. Como era belo o canto do rouxinol. Jaqueline amorteceu a saudade de seu amor com a nostálgica cantoria daquele simpático pássaro.

O rouxinol virou sua cabeça umas duas ou três vezes para a direita, pedindo que ela o seguisse. O rouxinol abriu suas lindas asas acastanhadas e levantou vôo, pairando, por um breve instante, diante dos olhos dela, antes de indicar o caminho a ser seguido.

Jaqueline seguiu por uma alameda arbórea com jazigos e sepulturas por ambos os lados até que o rouxinol pousou sobre uma linda placa de mármore. Ela se aproximou do pássaro e ajoelhou-se até onde ele estava. Ela viu a placa e sua vista escureceu. Um mal súbito. Um desagradável prenúncio de uma síncope. Estava tudo lá. Cada letra. Cada algarismo. Nome, epitáfio, data de nascimento e data de falecimento. Não havia a menor possibilidade de ela está equivocada. Ela estava diante de sua própria sepultura. Uma gentil e compassiva mão pousou sobre o seu ombro. Assustada, ela virou sua cabeça e olhou para o alto.

- Eu não consegui, amor! – disse David, com lágrimas nos olhos, enquanto o rouxinol pousava em seu ombro direito.

- David!?

- Oi, querida.

Jaqueline sentiu suas pernas fraquejarem. Havia medo e pânico em seus olhos, mas o súbito despertar daquele que foi sua grande paixão a havia relegado a um assombroso impasse.

- O que está acontecendo, amor? Estou com medo.

David abaixou-se até onde Jaqueline estava e, com seu polegar e seu indicador, ergueu seu queixo e olhou bem no fundo dos seus olhos, antes de beijar seus lábios. David notou que eles continuavam doces, como no dia que ele a beijou pela primeira vez.

- Não há o que temer, meu anjo. Agora estamos juntos. Para sempre.

- Eu estou morta?

- Não! Nós estamos vivos como jamais estivemos. Eu posso sentir o seu beijo e suas mãos em meu rosto. Se estivéssemos mortos, isso não seria possível.

- Para onde nós vamos?

- Embora.

- Para onde?

- Um lugar lindo, meu amor, onde tudo que sonhamos quando estávamos juntos poderá se tornar realidade.

Jaqueline envolveu David com seus braços, enquanto o rouxinol ainda cantava em seu ombro. Com a cabeça encostada junto ao peito dele, ela chorou em parte por uma inexplicável tristeza e outra pela felicidade de ter seu amado companheiro de volta e, dessa vez, para sempre...

David levantou-se e, carinhosamente, ergueu Jaqueline para junto de si, ainda evolvendo-a com seus braços. Ele tomou suas mãos para junto das suas, como da última vez em que estiveram juntos e saiu caminhando com ela.

O canto do rouxinol envolveu o ar, até que uma linda e reconfortante luz branca envolveu David e Jaqueline, conduzindo-os para um lugar onde pudessem desfrutar do único sentimento que eles, mutuamente, se devotavam: o amor, o mais sincero amor.


terça-feira, 21 de setembro de 2010

O exuberante e engenhoso teatro de Epidauro


Quando tinha, acredito eu, dezesseis anos tive, através de uma pequena excursão organizada por um professor de português que não ia muito com a minha cara, minha primeira experiência com o teatro. Tratava-se de uma adaptação de O Alienista, famoso conto de Machado de Assis. A peça era legal, mas um tanto séria e complexa para um bando de moleques que, naquele momento, muito pouco, ou quase nada, sabia sobre seu Machado. Se minha memória não me trair, o teatro chamava-se Barreto Júnior, localizado no bairro do Pina, aqui em Recife.

Os gregos se sobressaiam em, praticamente, todas as áreas do conhecimento. Hávia médicos, filósofos, escritores e, sim, senhor, arquitetos e teatrológos. Quem nunca ouviu falar de Ésquilo, não é verdade? Eu ainda fico fascinado com A República e, mais precisamente, o Mito da Caverna, do finado Platão. Isto, entretanto, pode ser que se trate de mero reflexo do que eu tenha escolhido para minha vida.

Há dois mil e quinhentos anos atrás, o vilarejo de Epidauro, situado sessenta quilômetros ao sul da cidade grega de Corinto, era um importante entreposto comércial e religioso.

O teatro de Epidauro foi, no decorrer do tempo, encoberto pela vegetação local, as colinas ondulantes e os oliveirais. Tal fato, por incrivel que pareça, o fez ficar conservado por todo esse tempo. Nada mais, nada menos, que seis metros de solo o protegeram por esse longo periodo. Foi apenas no século dezenove que um famoso arquiteto grego, chamado Panagis Kavadias, aguçado pela descrição do geógrafo grego Pausânias acerca do monumental explendor arquitetônico do teatro de Epidauro, o redescobriu sob as já citadas colinas, mais precisamente em 1881.

Após a descoberta, seguiram-se seis anos de escavações e muito trabalho árduo, findos os quais fez ressurgir o imponente teatro, quase intacto. Os arqueológos que trabalharam nas escavações afirmaram que ele havia sido contruido na primeira metade do século quatro AEC por Policleto, um jovem escultor e arquiteto grego, da cidade de Argos.

Quem, hoje, for fazer uma visita a Epidauro distinguirá, facilmente, as partes básicas do teatro, como a orquestra, uma área circular e plana, circundada por uma faixa estreita de mármore, onde realizavam-se as danças e o coro e, por trás dela, o palco, onde, atualmente, só restam as fundações. O chão é de terra batida e, no seu meio, há um altar. No começo, os atores se apresentavam para a platéia na orquestra e utilizavam, como cenários, pranchas triângulares e giratórias colocadas em todo o perimetro do teatro. Só depois é que o elenco passou a se apresentar no palco, fixando os cenários nas paredes do mesmo.

A notável acústica do teatro de Epidauro permite que um simples e discreto estalo com os lábios ou um pequeno suspiro seja ouvido até a última de suas vinte e uma fileiras ou, ainda, que os eventuais treze mil espectadores (essa é a capacidade atual do teatro) não perca um único fragmento de tais sons. Exagero? Não! Quando o homem usa sua inteligência para o bem, ele é capaz de feitos grandiosos, onde inúmeras gerações se lembrarão, com nostalgia, de todos os seus maravilhosos feitos.

Turistas descretes testemunham, por si próprios, tal fato. Muitos deles, sem qualquer amplificador de som, recitam poemas ou cantam no meio da orquestra e, ao perguntarem se ele ou ela foi ouvido claramente na última fileira, a resposta é que foi com a mais limpida nitidez.

Os estudiosos atribuem ao formato semicircular e anfiteatral do teatro de Epidauro essa excelente acústica. Os sermões realizados por Jesus Cristo a grandes multidões são capazes de atestar tal feito, visto que eles eram realizados, muitas vezes, em anfiteatros naturais, como encostas de colinas.

O acentuado declive em que as fileiras de assentos são dispostas faz com que a distância do palco às fileiras superiores seja reduzida, não permitindo que o som se enfraqueça até chegar às fileiras superiores. A isonômica dispersão do volume deve-se, também, ao fato de que as fileiras são corretamente distribuidas. A boa qualidade do mármore usado, a propagação do som após bater na superficie dura e compacta da orquestra, o silêncio e a brisa suave também contribuem para a perfeita acústica.

Festivais da fertilidade comemoravam a colheita, a vindima, a inexorável perspectiva da morte e a renovação da vida e, contemporâneo a esses festivais, surgiu o drama. As orgias, como também eram conhecidas tais festividades, eram consagradas a Dionisio, o mítico deus grego do vinho e da fertilidade. Como parte das celebrações havia as histórias, onde, a partir daí, estabeleceu-se três tipos de narrativa: a tragédia, a comédia e a sátira, as quais tinham forte apoio dos governantes locais com vistas a fortalecer seu poderio político. (Novidade!)

Com o passar do tempo, as orgias dionisicas deixaram de ter grande influência sobre as peças teatrais. Na busca de novos temas para suas peças, famosos teatrólogos gregos beberam na fonte da história e mitologia gregas. Com a, cada vez maior, popularidade das peças teatrais, surgiu a necessidade de teatros arquitetonicamente imponentes, como o de Epidauro.

As peças, de modo geral, eram compostas por um coro composto por, mais ou menos, 10 ou 15 pessoas e atores que, em cada cena, encarnando seus personagens, não passavam de três. Como sinônimo de "aqueles que respondem ao coro", os atores eram chamados de hipokritay que, como sabemos, passou a adjetivar, metaforicamente, aquelas pessoas que agem de uma forma, mas conduzem suas vidas de forma completamente oposta aquilo que, fervorosamente, defendem.

Na primeira métade do século vinte, o Teatro Nacional da Grecia traduziu as fomasas peças dos teatrologos gregos para o grego moderno, fomentando a produção de tais espetaculos em festivais anuais, como o da Epidauria, existente desde 1954. Companhias teatrais do mundo inteiro atraem turistas de toda parte para o teatro de Epidauro, onde são encenadas peças de teatrológos como Ésquilo, Eurípides e Sófocles.

Orgulho para a cultura grega, a qual brindou a humanidade com suas incauculáveis contribuições e descobertas, o teatro de Epidauro ressurge, tal como a Fenix, das cinzas e mostra que o teatro grego, ainda que antigo, está mais vivo que nunca.

Fonte: http://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/102000410?q=epidauro&p=par



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A menina e o vira-lata (conto)


Nuvens assomavam-se em uma fria e triste madrugada, onde escassas estrelas brilhavam junto a uma apática Lua. No entanto, nada era comparável a dor descortinada nos meigos e tristonhos olhinhos de uma linda garotinha que, junto com seu cãozinho vira-lata, vivia sob uma marquise de um decrépito e abandonado edifício.

A garotinha estava terrivelmente machucada, pois, naquela mesma noite, quando saiu para buscar comida para ela e seu cãozinho, tudo o que ela encontrou foi a maldade em sua crua e mais repulsiva forma.

Ela pôs um puído e esfarrapado paninho entre suas pernas, pois lá era o local que mais sangrava. Uns três ou quatro dentes da sua boca estavam quebrados, mas o que doía mesmo era o profundo corte em sua gengiva, de onde vertia um salivado e viscoso sangue vermelho vivo. Seu amado cãozinho estendeu suas patinhas sobre suas perninhas e lambeu seu braço, o qual havia sido atingido por um tiro de raspão.

O cãozinho, cujo nome era Apolo, chorou de tristeza e vergonha por não ter conseguido proteger sua guardiã e companheira. Das duas pessoas que o haviam devotado o sincero e desinteressado amor por tantos e tantos anos, ela era a única que ainda lhe restava. A garotinha sabia que o cãozinho não tinha culpa de absolutamente nada, mas ele não era capaz de entender aquilo, ou talvez não se achasse no direito de poder se dar ao luxo de fazê-lo.

No instante em que a garotinha pousou sua pequena e raquítica mãozinha sobre a cabeça de Apolo, afagando-a com carinho, o Céu brilhou com uma luminescência incrivelmente extasiaste e hipnótica, e o barulho que se ouviu em seguida faria o mais enfurecido relâmpago parecer uma suave melodia. Depois que isso tudo aconteceu, tudo o que era matéria e que estava ao redor da menininha havia simplesmente desaparecido, a exceção dela própria e de seu cãozinho.

Contrastando com a brancura envolvente, surgiu, lá no alto, uma dourada e brilhante esfera que, a media que se aproximava da garotinha e de seu cãozinho, os enchia de um reconfortante calor. Quando a esfera pousou diante deles, ela, aos poucos, foi adquirindo uma forma aparentemente humana, pois, na verdade a forma que a esfera adquiriu era angelical.

Apolo correu para o anjo e pulou em seus braços, enchendo sua face de afetuosas e babadas lambidelas, enquanto seu rabo balançava de um lado a outro, como as paletas do pára-brisa de um automóvel. O cãozinho vira-lata jamais poderia estar enganado. Sim, sem dúvida alguma, era ele que estava ali bem diante se seus perspicazes olhos caninos. O anjo tomou Apolo nos braços e dirigiu-se à garotinha.

- Amor?

- Amor!? Você me conhece?

- Acho que além de Deus, eu fui a única pessoa que a conheceu e amou mais que tudo no mundo.

- Mas...

- Eu sei. Você nunca me viu, não é isso que você está pensando?

- É que eu não estou lhe reconhecendo.

- E nem podia. Você ainda era muito pequenininha quando aconteceu. Nós só tínhamos um ao outro, além de Apolo para nos alegrar, mas minha hora havia chegado e eu tive que partir.

- Você...

A pequena garotinha, muito forçosamente, reavivou sua memória e, como cartas embaralhadas, alguns tristes acontecimentos vieram à tona em sua memória.

- Sim...

- Foi atropelado?

- Fui, minha linda.

- Papai?

- Oi, meu amor.

A garotinha correu aos braços de seu pai e, embora ainda estivesse machucada, não se importou nem um pouco, pois tudo o que ela queria era abraçar e enchê-lo de beijos, e dizer que o amava e como ele havia feito falta todo aquele tempo.

- Você vai ficar comigo?

- Eu preciso ir meu amor, mas não esqueça que um dia nós estaremos todos juntos novamente: Eu, você e Apolo.

A menina deitou sua cabecinha no ombro do seu pai e chorou de tristeza, pois sabia que não teria mais sua companhia.

- Amor...

- Hummm

- Eu vou falar com Deus e te prometo, pela glória da eternidade, que estaremos juntos muito, muito em breve.

- Isso é injusto. Eu não tenho escolhas.

- Não pense assim, princesa – disse o pai da menina. – Não se esqueça que eu sempre vou te amar e sempre estarei contigo, esteja você onde estiver?

- Também te amo, pai.

- Agora, precisamos dar um jeito nesses machucados. Depois eu vou dar uma lição em quem fez isso com você. Venha, deite em meu ombro e relaxe.

A menina sentiu a mão de seu pai carinhosamente afagando sua cabeça. Apolo, que ainda estava no outro braço do anjo, estendeu sua patinha sobre a perna da menina, e lá também repousou.

As longas asas do anjo envolveram a menina e seu vira-lata fazendo com que eles resvalassem para um doce e entorpecente sono, onde as cores do paraíso espocavam em seus sonhos como a mais inebriante e satisfatória recompensa.

* * *

A menina e Apolo estavam abraçados e ainda adormecidos, deitados sob a marquise do edifício abandonado. Quando acordassem, que grata surpresa eles não teriam! Além da felicidade de terem sonhado com o anjo que já esteve tão presente na vida deles, a menina perceberia que seu corpo não mais padecia em dor e aflição, e a lembrança do mal havia sido irremediavelmente apagada da sua memória.

Sete cestas repletas de deliciosos alimentos repousavam junto a eles. A menina e o vira-lata não saberiam explicar a origem de toda aquela comida, mas, de uma coisa eles tinham certeza: eles não esqueceriam, nem por um único instante, de agradecer a Deus por aquela maravilhosa noite.